segunda-feira, 15 de outubro de 2012


CAPÍTULO 13 e último capítulo

Praça São João Baptista
Subindo as avenidas e chegados a metade da avenida D. Nuno Alvares Pereira, vi-me novamente na praça São João Baptista para, daquela vez, atravessar totalmente a praça da Liberdade, na qual estava montado um palco para um qualquer concerto que ia ali acontecer. Passando pelo forum Romeu Correia, finalmente, chegamos à relva: o verde estendia-se à nossa frente, descendo íngreme até um caminho de cor guerná, para, novamente, tornar a subir numa colina pouco elevada do lado em que estávamos. Do outro lado, descia também ela íngreme até à avenida Rainha D. Leonor - avenida que servia de fronteira entre a freguesia de Almada e a freguesia da Cova da Piedade.
Parque Urbano Comandante Julio Ferraz
Haviam ali crianças a brincarem com os pais, uma vez que, áquela hora, o Sol começara a perder a força brutal com que estivera a açoitar a cidade todo o dia... mas ainda estar terrivelmente quente. Como as enormes árvores daquele lugar - com mais de quinze metros de altura - despejavam uma sombra cúmplice que ajudava a arrefecer a fraca brisa que se fazia sentir, a temperatura já estava boa para as crianças brincarem. Haviam uns velhotes sentados num dos raros bancos de jardim que já haviam conquistado a sombra jogada pelos altos prédios que circundavam a praça da Liberdade... toda a relva começava a fervilhar com a vida saltitante de bolas... com pequenos grupos de jovens que se sentavam na relva procurando a sombra... com os dois, ou três casais que romantizavam o ambiente com beijos quentes de Verão, com carícias públicas e descontraídas e com segredos amorosos aos ouvidos femininos que se encolhiam em cócegas e risos que se deixavam ouvir até onde eu e o Miguel estávamos, parados... em contemplação... admirando a relva que naquele momento nos  fazia lembrar o que a relva tinha sido em tempos de nossa juventude.
A relva era o modo como sempre chamáramos aquele grande espaço relvado, mesmo antes dele ter sido baptizado como Parque Urbano Comandante Julio Ferraz.
“- Lembras-te como é que isto era há uns anos atrás, Miguel?”
“- O quê?!” - perguntou-me quase como que ofendido. "- Então não lembro?! Parava aqui uma grande parte da juventude de Almada...” - parou como que a olhar o vazio, português saudosista como só ele, tipicamente,  era.
"- O que é que aconteceu, afinal? Para onde é que foi o pessoal todo?!" - consciencializou ele uma vez mais a rápida transformação das coisas há sua volta.
“- Lembras-te daqueles anos...” - continuei eu – “... em que paravam às dezenas e dezenas de jovens ali em baixo: passou-se a fazer ali, há mostra de todo o mundo, o que maior parte fazia às escondidas dos pais, da polícia e do resto do povo.”
 “- Era o pessoal todo deitado no chão, uns punk’s, outros hippies... os góticos, os heavy-metal's, os rock billy's, os surf's e os betinhos...”
“- Os de estilo clássico...”
“- Os inclassificáveis...”
“- ... ou simplesmente, os mal vestidos!” - rimos as gargalhadas.
“... e os loucos!!!”
“- Sim, não podemos esquecer personagens como o Zé Guilherme que andava sempre a escrever no chão e a bater com o dedo no ouvido, falando com o invisível.”
“- Ninguém estava a reparar nas diferenças e sentiamo-nos todos iguais... até aqueles mais excêntricos, como eram o caso dos darks vampirescos..."
“- Sim...  para esses, então, deveria ser um dos raros sítios em que sentiam à vontade: cada vez que os viam a passarem na rua, a reacção das pessoas em geral deixava-me triste. Compreende-los nem nós os compreendíamos, mas pelo menos respeitavamo-los... mas na rua ninguém respeitava o modo de eles se expressarem através do seu visual... as pessoas riam à descarada, sentindo-se protegidas pelo estilo comum que as circundava e que as faziam ser todas iguais... era vomitante! Em minha opinião, eles embelezavam o ambiente á sua volta com o seu estilo próprio, as formas de suas roupas, as rendas brancas nos colarinhos e nas mangas das camisas... simplesmente, lindo!”

A juventude de quem falávamos costumava em tempos idos passar ali o tempo conversando, fumando ganzas, lendo, tocando guitarra, bebendo cerveja, ouvindo música estranha e barulhenta nos chamados tijolos (rádios portáteis, mas com alguns consideráveis watts de saída de som), quase como um Woodstok almadense. Jovens que decidiam, maior parte deles, utilizar o tempo de suas existências em vidas boémias, sem destino, com o simples objectivo de, ao acordarem, se encontrarem, falarem, sentirem-se compreendidos, fumarem uns charros e beberem qualquer coisa que embriegasse e que os fizesse esquecer o estilo de vida que a sociedade lhes queria impôr. Vivíamos naquele tempo uma poesia inconseqüente de paz e amor.
Antiga arquitectura do miradouro Luis de Queiroz
(como se podia ler numa antiga placa agora inexistente)
Porém, aquilo não era o que os pais daqueles jovens queriam para os seus filhos, nem tão-pouco, aquilo era o que a cidade de Almada queria como fama e paisagem visual. Estavam a ser demasiados os jovens que se juntavam áquele imenso grupo... e a coisa já estava a durar há demasiados anos... tantos que alguns jovens que ainda eram crianças quando os primeiros frequentadores assíduos da relva começaram ali a parar, já estavam, também eles, atraídos e integrados no imenso grupo fumando seus cigarros, fumando suas ganzás, bebendo das mesmas garrafas de cerveja que nós... por isso, o império capitalista, consumista e materialista, defendendo os seus interesses e essencialmente, os interesses comerciais daquela zona - mais precisamente, do Centro Comercial M. Bica - começou a tomar, com argumentos cada vez mais incontestáveis, conta dos estilos de vida de cada pessoa... e pouco a pouco, aqueles jovens foram sendo empurrados para os espaços limítrofes da cidade, cada vez mais afastados dos olhos que não os podiam e não queriam ver - como eram o caso dos turistas, ou das crianças e dos jovens das duas escolas que existiam ali perto. Então, depois da progressiva pressão executada sob diversas formas sobre aqueles jovens, todos eles começaram a ser encontrados no antigo miradouro Luis de Queirós, nas tascas de Almada Velha... aquele miradouro, por motivo de degradação, fora, mais tarde, deitado abaixo e, no seu lugar, construído o novo e moderníssimo Miradouro da Boca do Vento, em arquitectura ousada, tendo nele sido incorporado o Elevador da Boca do Vento,  pelo qual se passou a descer de Almada Velha até ao Jardim do Rio, facilitando o acesso aos espaços de cultura e lazer que se encontravam umas dezenas de metros mais abaixo, assim como aos restaurantes que também ali existiam. Mais tarde, toda aquela restruturação e reaproveitamento dos espaços antigos do Cais Ribeirinho do Ginjal, fizeram de Almada Velha um ponto de referência turística de toda a margem sul.
Porém, como o plano-mestre de todo o reaproveitamento do belíssimo espaço de Almada Velha e do Cais Ribeirinho do Ginjal era muito mais importante do que o modo como aqueles jovens estavam a viver as suas vidas (modo de viver que em pouco, ou nada contribuia para o desenvolvimento económico, social, ou cultural da cidade, sendo eles considerados como simples parasitas da sociedade), eles acabaram por ser atirados pela falésia abaixo, até ao único local que restou para eles pararem e poderem se encontrar e levar aquele estilo de vida: a Barra Espanhola, mais conhecida pela Tasca do Sr. Castelo, mesmo à beirinha do Tejo, em Cacilhas.
 Ou seja, já nem no Jardim do Castelo aquele tipo de juventude podia parar, pois o jardim tinha tido toda a arquitectura interior literalmente deitada abaixo (exceptuando as principais árvores a princípio, mas até elas tiveram o mesmo fim destrutivo): lá dentro fora construído um restaurante panorâmico, tinham sido colocados portões nos acessos ao jardim - que eram trancados a partir de uma certa hora, havendo com guardas no seu interior daquele espaço toda a noite, o que impedia que o pessoal do Jardim do Castelo podesse lá parar e lá, longe dos olhares intrometidos que os acusavam de não quererem fazer nada da vida, fumar as suas ganzas, beber as suas cervejas e jogar as suas cartas. Mas não eram só os jovens que fumavam ganzas e bebiam copos que eram impedidos de lá parar: os outros jovens, os casais, os velhos, as famílias, todos eram impedidos de entrar num espaço público, num espaço cultural e histórico, patrimônio cultural, tudo devido a uma ganância económica.
Nova arquitetura do miradouro da Boca do Vento
com elevador panorâmico Foto: Carlos Neves
O miradouro Luis de Queirós fora, também ele, completamente destruído para dar lugar ao outro moderno, estando lá, permanentemente, seguranças de uma qualquer companhia de vigilância, que ajudavam os turistas estrangeiros e nacionais a fazerem as viagens para cima e para baixo. Logo, aquele sítio também já não podia ser utilizado pelos consumidores de haxixe e por todos aqueles que andavam pelos caminhos do Vai-de-Roda e que na vida boémia se deleitavam.
Toda a arquitectura em redor da relva, o Parque Urbano Comandante Júlio Ferraz, fora também, em grande parte, alterada com a criação da praça da Liberdade (praça ampla, sem movimento automóvel, com um pequeno complexo de lojas e o forum Romeu Correia incluídos em seu espaço)... o crescente movimento do Centro Comercial M. Bica - do qual haviam partido as maiores pressões para que aquele grupo de jovens anarcas (tal e qual como os mais velhos gostavam de chamar a todos os jovens que eles não entendiam) fosse afastado dali – estava a alcançar picos em seu auge de potêncial económico, aproveitando tudo o que era moda (Natal, Páscoa, dia de São Valentim, Carnaval, Helloween, etc.) para criar campanhas promocionais que elevassem o estatuto comercial daquele espaço. Ou seja, a relva tinha passado a ser um local, também ele, familiar e impróprio para os jovens que andavam à deriva na vida. Com toda aquela transformação da cidade, aqueles jovens acabaram por ser “expulsos” de todo o lado, até que o único sítio que lhes restou fora a Tasca do Sr. Castelo e a algo escondida zona da Casa da Juventude - Ponto de Encontro, onde podiam fumar à vontade, beber, apanhar grandes mocas e bebedeiras e ninguém os chateava.
Foram expulsos, empurrados, afastados, mas as situações, os problemas que os levavam a viver com revolta interior aquele estilo de vida improdutiva, não tinham sido resolvidos. Mas o império capitalista não queria resolver problemas de ordem espiritual: o império queria era uniformidade e aparência de paz e ordem pública.
  Ainda assim, mais tarde, tudo isso acabou e maior parte dos jovens dispersaram para trabalhar, casar, ou juntar-se, terem filhos, acabarem os estudos e as universidades e entalarem-se definitivamente com um empréstimo bancário... enfim, construirem a vida que a sociedade queria que todos construissem... porém, muitos deles, continuavam, mesmo trabalhando e mesmo possuindo uma vida familiar, a terem enormes tendências para a vida boémia e de consumo de substâncias tóxicas (o que era bom para a industria tabaqueira e de álcool).
 Ou seja, apesar de encoberto, o problema continuava por resolver. Se aqueles jovens continuavam consumindo substâncias tóxicas por não estarem satisfeitos com o modo como a vida se apresentava em sua naturalidade, é porque alguma coisa não estava bem ao nível espiritual. Só que o totalitarismo era de ordem material e desde que o povo pagasse os seus impostos, consumisse gasolina e mantivesse a ordem pública, então, para o império, tudo estava bem.
Desta vida marginal e vadia vieram a surgir maior parte dos jovens artistas da cidade de Almada. Não era tão bem sabido entre as camadas artísticas que os maiores criadores e artistas mundiais haviam nascido da vida boémia, da vida da noite e do underground urbano? Não era tão bem conhecido que aqueles que a sociedade adorava como sendo grandes artistas, tinham maior parte deles dado asas à sua imaginação criativa nos meios boémios, vádios e underground, tendo, mais tarde, sido descobertos por alguém que os financiou? Finalmente, não era tão bem sabido que maior parte daqueles grandes ídolos mundiais erguidos pelos media tinham graves problemas com drogas e álcool? Porque em Almada seria diferente?

Era uma contradição a sociedade querer acabar com os ambientes que produziam os individuos que a própria sociedade mais adorava e idolatrava.
Ou a sociedade estava idolatrando as coisas erradas, ou os indivíduos certos estavam sendo produzidos pelas vias erradas.
Em relação à questão da reinserção social destes jovens em termos de actividade social e laboral, eu penso que o plano de restruturação, reaproveitamento e renascimento da cidade de Almada fora bem sucedido, porque, em regra geral, a qualidade de vida de cada um daqueles jovens melhorou. Mas não quer dizer que, daquela transformação social tivessem sido todos bem sucedidos... o que acontecia era que não dava tanto para notar os vencidos da vida, porque andavam todos dispersos.
Eu e o Miguel sentámo-nos no meio da relva. Ao nosso lado um pai brincava com o filho ainda pequeno, atirando-lhe devagarinho uma pequena bola que ele deixava sempre escapar com um pontapé na atmosfera. O Miguel ficou a olhar para aquela cena com ternura e perguntou-me sem esperar resposta:
“- Achas que ainda vamos conseguir ter uma vida assim? Uma mulher, uma criança, um trabalho de oito horas por dia, contas por pagar? Ás vezes isto parece-me tão longe...”
Respondi-lhe de qualquer forma:
“- Não sei. Quem saberá o futuro? Mas do modo como eu vejo o mundo eu também não sei se quero cá colocar uma criança e ter a responsabilidade de a criar...”
“- Tens medo de não conseguir ser um bom pai?”
     “- Tenho mais medo de ter que me entalar com esses gajos das seguradoras, das imobiliárias, das finanças, da segurança social... sei que seria um bom pai, mas tenho a certeza que não seria o escravo ideal desses gajos todos... e isso é que poderia fazer de mim um mau pai.”
         “- Estás a ver?! Estás a dizer exactamente o que eu disse lá em baixo na Tasca do Castelo. Eu identifico-me perfeitamente com isso também!” – tranquilizou-me e tranquilizou-se em confissão.
         “- Pois, claro! Então, porque é que será que existem tantos jovens que não lutam por construir uma vida do modo que os seus pais lhes ensinaram que deveria ser construída? Porque é que existem tantas pessoas a desistirem de lutar desde muito cedo? Ou porque é que existem tantos jovens que caem nas malhas das drogas que se encontram por aì, pelos cantos da cidade?” - coloquei-o a pensar.
         “- Pois é!” - respondeu seco.
         “- Pois é, nada! Pensa lá porque é que há tanta gente como eu e tu, a desistir de lutar pela construção de uma vida dentro dos parâmetros que o socialmente-bem-aceite acha que se deve construir? Porque é que tu queres é fumar umas ganzas, beber uns copos, estar com o pessoal onde encontras esse tipo de coisas e não lutar por nada? Afinal, se tu o que queres é ter uma criança e uma mulher, porque é que não crias as condições para que tal aconteça e aconteça de modo, relativamente, seguro?”
         “- Sim! Sim! Eu sei!” - já estava ele com aquele tom de voz de raiva por se estar novamente a expôr e a pensar numa coisa que ele não queria estar a pensar. “- Um gajo acaba por virar escravo do dinheiro e passa a ter que viver e vestir o que a sociedade aceita como bem, pois, senão, um gajo nem trabalho consegue arranjar.” - desabafou ele.
         “- Claro! Em outros países da Europa, onde as pessoas e os governos tem uma mente mais aberta, tu consegues arranjar trabalho, mesmo que tenhas uns piercing's nos lábios, ou no sobrolho... por exemplo, na Holanda as pessoas não são descriminadas por fumarem haxixe... elas não são marginalizadas, logo, não se sentem marginalizadas, a sua auto-estima é mais elevada e conseguem mais facilmente inserir-se na sociedade, trabalhar, fazer descontos para o estado e deste modo viver uma vida mais aproximada do ideal de vida que a sociedade nos impinge para sobrevivermos com alguma comodidade e segurança... se as coisas existem, porque não admiti-las? Só traz vantagens para a sociedade enfrentar e aceitar esse tipo de coisas. Ainda assim, vai lá vêr como é que as coisas estão por lá, na Holanda: corrupção-de-alma á brava, exploração de mão-de-obra estrangeira, submissão e consentimento do povo holandês a um estado de créditos, empréstimos bancários e sistema de controle tecnológico absoluto.”
         “- É verdade! Um gajo aqui tem de se esconder para fumar uma ganza e depois, se é apanhado a fumar uma ganza ainda está sujeito a levar alguma chapada de algum polícia mais novo do que ele. Para não falar daqueles que têm a vida prejudicada pelo simples facto de fumarem ganzas. As coisas existem, lidem com elas” - defendeu ele.
         “- Não as censurem!” - continuei.
         “- Não as reprimam!” - concluiu ele.
         “- Mas uma coisa é certa: tu fumas uma ganza e já não te apetece fazer mais nada!” – coloquei eu em cima da mesa o outro lado da moeda.
         “- Não me apetece fazer mais nada quando o que tenho de fazer não vai de acordo com o meu Coração.” – defendeu-se ele. “- Vê lá quando nós trabalhamos as músicas se fumar ganzas me atrapalha... não me sinto oprimido... ou quando nós trabalhamos todos na quinta-dos-pauzinhos (como lhe chamávamos), vê lá se eu aì não trabalhei. Estava à vontade, entre o pessoal e trabalhava a terra, que é uma das coisas que eu mais gosto de fazer... por isso, penso que fumar ganzas não é desculpa para a preguiça, ou para a desmotivação... acredito que isso já parta da pessoa.”
         “- Sim. Concordo contigo. Eu, quando fumo ganzas, não me dá para ficar parado. Dá-me é logo uma energia, uma vontade de actividade... pois é... tens toda a razão: já depende das pessoas o modo como elas fumam as ganzas: de um modo construtivo, ou de um modo destrutivo.”
         Entretanto apareceu o Zacarias, vindo lá de cima, dos lados do forum Romeu Correia.
         “- Então, pessoal?” - comprimentou-nos ele, apertando-nos as mãos de modo firme. “- O que é que se faz?” - aquela pergunta de sempre...
         “- Olha...” - adiantou-se logo o Miguel – “... este aqui está a começar a escrever um livro sobre Almada e estávamos agora a falar da postura do pessoal daqui, que fuma ganzas... que temos de andar praticamente escondidos pelos cantos para fazer uma coisa que não faz assim tanto mal.”
        “- Pelo menos não tanto quanto o alcóol...” – disse logo o outro.  “- Olha, em Almada, é assim que eu fumo ganzas...” - e com a pedra de haxixe que já tinha tirado do bolso e sempre em postura algo cómica e exageradamente provocante e ousada, abriu um cigarro com as mãos para cima e as pernas abertas, como se quisesse mostrar a alguém lá longe. Eu e o Miguel começamos logo a rir. E naquela posição provocativa, definitivamente não escondendo o que estava a fazer, despejou o tabaco na mão esquerda, colocou o pedaço de haxixe em cima do filtro que tinha entre os dedos dessa mesma mão... com a outra mão aqueceu a pedra com o lume do isqueiro e depois, colocando a pedra quente e macia em cima do tabaco, misturou tudo numa sopa de tabaco e haxixe... deitou uma murtalha em cima da sopa com a cola voltada para baixo... colocou a palma da mão direita em cima da murtalha e virou de repente, ficando a mão esquerda em cima, a mão direita em baixo e a sopa em cima da murtalha... depois, colocou um pequeno pedaço rectângular de cartão enrrolado em forma cilindrica no extremo direito da murtalha e enrrolou-a com a perícia de muitos anos... passou-lhe a língua na cola e voilá!. Depois, com o charro na boca, o nariz bem espetados para cima e o rabo espetado para trás (eu e o Miguel já estávamos deitados, rebolando na relva, rindo às gargalhadas) acendeu-o em  movimento alto e descoberto. Puxou a primeira passa com força, olhando a ponta laranja que queimava rápido e depois, fechando os olhos, puxou o fumo que tinha na boca para dentro dos pulmões já habituados a tanta poluição. Quando, depois de suster a respiração durante algum tempo, jogou fora toda aquela bafurada, os seus olhos incharam e tornaram-se vermelhos de repente... e foi assim, descontraido, já stone que ele falou:
         “- Meus caros: cheguei agora do trabalho. Trabalhei hoje, Sábado, até ás quatro da tarde num trabalho de merda, para ganhar um ordenado de merda, andando não sei quantas horas em transportes públicos de merda e agora, com o meu dever de cidadão cumprido e os meus descontos feitos, disfruto daquilo a que, por liberdade de escolha, tenho direito: chegar á minha querida relva e fumar um granda charro.”
            Depois de ter dado mais algumas bafuradas estendeu-me o porro.
            Entrei no ritual.
        O Miguel agarrou-o logo a seguir... e o Zacarias, ainda com o fumo preso dentro do peito e com as veias do pescoço inchadas pela pressão sanguínea.
         Pouco depois, eu e o Miguel levantamo-nos para ir até Almada Velha petiscar qualquer coisa. O Zacarias dirigiu-se para casa porque estava na hora de jantar em casa dos seus pais.
Rua Capitão Leitão
        Saidos da relva e chegados à zona da praça da Liberdade, notamos que o movimento de pessoas e de automóveis tinha aumentado, reflexo de alguns já terem acabado de jantar e estarem a sair de suas casas e a prepararem-se para a noite de Sábado. Quando lá mais acima passàmos o Quartel dos Bombeiros Voluntários de Almada, e chegàmos à rua Capitão Leitão, o movimento já tinha aumentado ainda mais, pois, em nossa lenta marcha, demos tempo para que mais pessoas saissem à rua: no largo José Alaiz já um certo tipo de juventude de Almada se havia aglomerado: jovens vestidos numa mistura que faziam lembrar gnomos, duendes, palhaços, hippies, freak's, num estilo hard-core de influência skate, trasher's e alguma influência dos novos estilos metálicos que as tendências musicais espalhavam pelo planeta, (como eram o caso dos Limp Bizkit, uma banda com bastante influência sobre os jovens, não só a nível músical e visual, mas também ao nível dos baixos padrões de consciência que a filosofia de suas letras destrutivas e caóticas apresentavam às mentes mais influenciáveis): aqueles jovens eram o seguimento da juventude dos caminhos do Vai-de-Roda.
         Ironia: ali mesmo ao lado estavam os tais antigos soldados do ultramar e os antigos trabalhadores dos velhos estaleiros que fizeram Almada crescer. Olhavam de lado e criticavam aquele aglomerado de jovens que fumava ali, à descarada, o haxixe que espalhava em nuvem o cheiro vegetal por todo o lado onde o vento o quisesse levar... olhavam de lado e criticavam os jovens que viam chegar em carros de médio-burguês, vestidos de roupas estranhas e a enfiarem-se dentro dos pubs e bares que haviam por toda a rua Capitão Leitão e por toda a Almada Velha, dos quais saiam música  alta, estranha, incompreensìvel e horrivel... olhavam de lado e criticavam que “isto não era nada assim nos nossos tempos” e que o tipo de comportamentos insanos e despreocupados que os viam ter no meio da rua a “fazerem figuras tristes” não se viam no tempo em que as pessoas “se davam ao respeito”.
         Alguns falavam isto com um copo de cerveja, ou de whisky na mão. Numa coisa eles estavam certos: as libertinagens a que os jovens se davam naquele tempo era muito mais desiquilibrada do que aquelas a que eles se davam quando eram jovens. Só que, quando eles eram jovens os tempos eram outros e vivia-se debaixo de uma ditadura. Porém, os venenos que eles consumiam quando jovens e que ainda continuavam a consumir, eram tanto, ou mais prejudiciais do que aqueles que os jovens consumiam ali, à descarada!
         E não sabiam eles que, entre os jovens, cada vez mais circulavam mais drogas, isto em termos de quantidade, de qualidade e variedade... não sabiam eles que cada vez se consumiam bebidas mais estranhas naqueles bares, com as cores mais berrantes, os ingredientes mais irreconhecíveis... não sabiam eles que as experiências sexuais entre os jovens estavam a acontecer cada vez mais cedo e de um modo cada vez mais diversificado, havendo cada vez mais abertamente de tudo: homossexualidade, bissexualidade, sexo virtual, sexo em grupo, troca de casais, orgias, etc... não sabiam eles o que os jovens iam fazer quando saiam dali de carro e para longe... nem podiam, porque, se para mim e para o Miguel algumas coisas já estavam a ficar fora de prazo e algumas das coisas novas que apareciam (apesar de as conhecermos e entendermos e até experimentarmos) não se encaixavam no nosso ritmo e estilo de vida, quanto mais naqueles jovens de outrora, metidos nos cafés, a viverem o típico saudosismo a que o povo português tanto se entregava como modo de viver...
         Aqueles jovens eram a nova vaga que invadia Almada Velha e toda a Almada em geral... jovens cheios de vícios, mas mais integrados no ritmo semanal aceite pela sociedade em geral... será? As notícias divulgadas pela propaganda do medo pareciam demonstrar exatamente o contrário, revelando actos extremos de violência e insanidade. Porém, durante a semana de produção laboral, era muito mais difícil ver aquela concentração de consumo de substâncias tóxicas... diferente do tempo em que eu e o Miguel éramos mãos jovens, em que a concentração e o consumo descarado acontecia durante toda a semana. Será que aqueles jovens também viviam uma vida ociosa? Se sim, então, onde andariam durante a semana que nós não os víamos? Maior parte deles estudava, sabíamos disso... mas, depois da escola, onde andariam que não os víamos na rua? Agarrados à virtualidade? Em locais longínquos do centro urbano levados pelos carros pagos pelos créditos em que os pais se metiam? Haviam certas coisas que eu e o Miguel já não entendíamos...
         Quando éramos jovens e quando partilhávamos o ócio entre a relva e o antigo miradouro Luis de Queirós, enchiamos toda aquela zona com música de violas, guitarras portuguesas, jambés e cânticos portugueses... os velhos metiam-se conosco, comprimentavam-nos e até paravam e mantinham conversa... mas naqueles tempos modernos... passagem de milénio... por exemplo, aquele que era para aquela geração o snack-bar "A Tasca do Cão", tinha sido para a nossa geração, simplesmente, A Tasca do Cão, na qual, em ambiente podre, anarca e rebelde, só paravam rocker's, punk's, heavy-metal's, freak's, drogados e outros considerados restos da sociedade almadense e arredores. No tempo em que eu e o Miguel nos sentíamos a chegar a casa cada vez que nos aproximávamos daquela zona, os velhos falavam com a juventude chamada perdida, que enrrolavam e fumava ganzas no meio das ruas de Almada Velha e bebiam cerveja e vinho por garrafas nos degraus das casas que ficavam em frente às tascas. Os alcoólicos de longa data, os mendigos, os desprezados pela familia, pelos amigos e pela sociedade em geral, os loucos e os de neurónios queimados pelos longos anos de drogas farmacêuticas, os toxicodependentes de heroina, assim como os ditos “normais” que por ali paravam para fumar, beber, cantar, dançar, atrofiar... todos se sentiam bem ali e todos se sentiam, minimamente, aceites em sua genuinidade, perdidos em seus caminhos de vida vazia... os seus passos de caminhos perdidos e de vida vazia tinham sempre para onde ir ao fim do dia: para Almada Velha onde o pessoal parava, falava, bebia e fumava e onde se lia, tocava-se e ouviam-se músicas e cantares.
         Agora, os velhos já não comunicavam com os jovens que ali paravam e todos os marginalizados e auto-marginalizados pela sociedade não tinham onde ir ao fim do dia.
         O tempo de nossa juventude estava a ficar cada vez mais longe. Agora o espaço tinha outro ambiente... outras pessoas... outros estilos... outros sons... outros cheiros. Quando penetramos por Almada Velha adentro deparámo-nos com visões que não costumávamos vêr: jovens vestidos de cores fluorescentes, com estilos de roupa que pareciam tirados dos videos da MTV, ou de um qualquer herói dos cartoons da editora Manga. Nos novos bares e pubs abertos onde em tempos foram as tascas onde bebíamos jerupiga e ginginhas, em vez de manterem conversas uns com os outros, os jovens preferiam somente beber... a música saìa tecnológica e artificial, sendo extremamente difícil distinguir um qualquer instrumento musical, simplesmente, porque não os tinham em suas composições. A tasca da esquina, desde que o antigo dono falecera, estava transformada em pub, onde agora, beber, era mais requintadoe colorido... e pela aparência, as bebedeiras eram mais aceites socialmente. A tasca do preto era a única que se mantinha tal e qual como era, já que, teimoso, o preto não morria... mas já devia haver quem andàsse à espera que tal acontecesse. Lá mais à frente até as antigas lavadeiras tinham sido transformadas numa discoteca de onde o som saìa alto e estridente, junto com um poderoso holofote que assinalava nas nuvens a presença em forma de convite, jogando para o céu um jogo de luzes atraentes que se viam a vários quilómetros de distância. O que mais destuou no meio de tudo aquilo fôra, aparecidos no meio daqueles jovens de quinze, dezasseis anos (uns mais novos, outros mais velhos), abrindo caminho largo por entre a massa jovem, três polícias, ombro-no-ombro, a ocupar toda a estreita rua de um lado ao outro, obrigando todos os jovens a encostarem-se às paredes para os deixarem passar: os dois policiais das pontas fardados com longos cacetetes até abaixo dos joelhos e armados de metrelhadoras e o do meio, de fato de macaco azul, com cinto verde tipo tropa, com um chapéu igual ao dos outros, tendo numa mão uma Uzi e na outra mão a trela dum enorme rothweiler com coleira de enormes picos. Para quê? Para quê aquilo no meio daquela juventude? Qual era a vossa ideia? Espalhar o medo? Habituar os jovens a viver num estado de repressão militar? Ou o quê?
         O mundo era outro... as pessoas eram outras... os ambientes eram outros... os gostos eram outros... a política tinha-se europeizado... o escudo (a moeda) tinha-se transformado em euro... o World Trade Center tinha caído... o Iraque tinha sido invadido pelos americanos... o Irão estava quase... a quantidade de automóveis em Almada tinha aumentado insuportavelmente...
         ... e depois do Miguel ter-se dispersado completamente no meio da juventude, colando-se a um qualquer grupo de jovens para fumar uma qualquer ganza que por ali estava a ser feita, esquecido do petisco para o qual tinha sido convidado de tão louco que já estava com o haxixe, eu desapareci dali e fugi por Almada acima, pelo meio de toda aquela confusão visual e sonora... e fugi e as pessoas começaram a desaparecer... e subi e passei para além do Palácio da Cerca... e continuei a subir e passei o Cemitério de Almada, o Seminário e cada vez as ruas ficavam mais silenciosas e o som da cidade cada vez mais longe...
Seminário de São Paulo
num dos pontos mais altos de Almada
         Lá mais à frente, antes de começar a curva íngreme que dava acesso ao Cristo-Rei, depois de tantas voltas, por obra das forças conspiradoras do Universo, encontrei o Vitor que seguia os mesmos passos que eu, direito à casa do Carocha...
         “- Então? Por aqui?” - perguntou-me surpreso.
         “- Já viste como é que está a cidade?” – insinuei-lhe eu a resposta.
         Ele sacudiu a cabeça em compreensão. Dirigia-se a casa do Carocha pelo mesmo motivo: em busca daquela paz que nos envolve quando saímos do meio do caos e passamos a ouvir o cantar dos grilos no meio da noite quente de Agosto. Empaticamente, caminhamos em silêncio, respeitando, mutuamente, o que cada um vinha procurar... e encontramo-lo no som suave do mato seco que a fraquíssima brisa morna fazia mexer... estava no pio da coruja que parecia ir a acompanhar-nos... no canto das cigarras... no silêncio da música campestre que por ali nos era concedido ouvir... e em nossos corações... 
Estátua do Cristo Rei de braços abertos para Lisboa
e para o rio Tejo. Ponte 25 de Abril
Acabada a longa curva, ainda encontramos alguns carros estacionados, silenciosos, com casais lá dentro, como era habitual por aquela zona, quando anoitecia... mas também eles estavam respeitar a quietude do Verão que por ali reinava...

Chegados juntos a casa do Carocha, ele veio receber-nos feliz por poder partilhar companhia com quem ele considerava agradável... pressentiu o nosso silêncio e convidou-nos a entrar quase sem falar... o que fizémos, para logo de seguida descobrir que também ele tinha construido ali um silencioso ambiente, de mistério iluminado por velas que se espalhavam sem ser em demasia... estava quente... a companhia era boa... o ambiente acolhedor.
Sentamo-nos.
         “- Então?” - escolheu-me ele, brilhando os olhos de criança com um pacífico sorriso - “Que é que contas?”
         “- Olha...” - respondi-lhe baixinho – “... comecei hoje a escrever um livro.”

sexta-feira, 5 de outubro de 2012


CAPÍTULO 12

         Depois de terem sido rodadas algumas ganzas e o Miguel ter descoberto o fundo do jarro de vinho tinto com a ajuda do puto Gaspar e da Liliana, eu e ele resolvemos subir até Almada.
         Contraditoriamente ao que era usual, resolvemos ir por Cacilhas e subir até Almada, pela primeira avenida do enorme corredor de vento que atravessava a cidade de um lado ao outro, a avenida 25 de Abril
Foto: Luís Filipe Maçarico
     Diferente do que costumávamos fazer, quando íamos pelos caminhos do Vai-de Roda - continuando o caminho do Ginjal onde ele me havia encontrado e escolhermos entre subir a escadinhas do Ginjal (as quais subiam a Arriba-Fóssil, naquele tempo com duzentos e oito degraus, mas que em tempos passados, antes de ter sido em parte destruída por derrocadas, tivera muito mais), ou então, continuar em frente, passando pelo Jardim do Rio (espaço muito antigo e muito bem recuperado pela Câmara Municipal de Almada), até quase entrar nos antigos e pequenos estaleiros do Olho-de-Boi (ainda a funcionarem, mas já com pouquíssimos operários e serviços disponíveis) e depois subir a íngreme estrada para carros que ia até ao novo Miradouro da Boca do Vento (do qual se podia contemplar praticamente todo o Espaço Ribeirinho do Ginjal, assim, como toda a costa de Lisboa até ao mar). 
         Antes de entrarmos na avenida 25 de Abril, admiramos o imenso espaço vazio do terreno dos antigos estaleiros da LISNAVE que se estendia alguns quilómetros á nossa frente. Não havia muito tempo, teria sido impossível, do local em que estávamos a passar, conseguir ter a noção do tamanho daquele espaço: a quantidade de guindastes com dezenas de metros de altura, os monstruosos petroleiros, carregadores e outros barcos de grandes dimensões que estavam sempre atracados para reparações e restauros e os enormes armazéns que por ali se costumavam espalhar, tapavam, sem dificuldade, a vista sobre o horizonte que, naquele dia, se deixava descobrir até ao concelho do Seixal, do Montijo e do Barreiro, do outro lado da baía ali criada pelo rio Tejo.
          A conversa que tínhamos iniciado na tasca do Castelo tinha-se evaporado no estabelecimento com o fumo da primeira passa que o puto Gaspar puxou do charro. Mas, em mim, aquele tema ainda pairava, aéreo, sobre a minha mente, infiltrado em meus pensamentos. Por isso, quando ao subir aquela avenida pelo passeio do lado direito da mesma, me deparei com uma frase há muito escrita numa parede de um dos prédios que constituiam aquele enorme corredor de vento. Aludia a qualquer movimento do pós-25-de-Abril. Não consegui calar-me e o tema voltou novamente a sair-me pelos lábios secos do calor, daquela vez transformado numa outra prespéctiva:
         “- Se há coisa que reflecte muito bem a verdade histórica de Almada – disse eu ao Miguel - assim como o ambiente que nela se vive, são as paredes da cidade e os graffitis que nela existem.” - pelo meu tom de voz e através dos anos que o Miguel me conhecia, ele soube muito bem que eu estava predisposto a dissecar aquele assunto até ao fim... por isso, sem resistência, deixou-se levar pelo diálogo que fomos tendo em trocas de impressões, de opiniões, de visões, de experiências. E com um tom irónico, de brincadeira e cumplicidade, começamos uma conversa algo divertida:
“- Ora, se bem me lembro os graffitis começaram... começaram... ah, já me lembro: começaram na idade-da-pedra!” - dei eu como que em pontapé de saída.
“- Mas antes da idade-da-pedra não tinham já existido super-civilizações?!” - acompanhou-me ele, compincha.
“- Será que eles lá também faziam graffitis?” - perguntei apontando o indicador direito para cima num movimento de rotação de pseudo-intelectual.
“- Bem, não compliquemos...” - disse ele, também armado em intelectualóide, como se falasse na televisão - “Os graffitis começaram na idade-da-pedra: os homens pré-históricos pintavam uns bois e uns homens-macacos mal feitos à brava, umas mãos...”
“- Eu até cheguei a ver num documentário e numa revista que também existiam O.V.N.I.S. representados em pinturas rupestres...” - informei.
“- ...e em pinturas santas da época da renascença...” - mostrou-se ele entendido.
“- Bem, bem... lá estamos nós a divagar outra vez. Estávamos a falar de graffitis! Gra-ffi-tis!” - orientei.
 “- Está bem! Pronto! Então, continuando: parece que os egípcios também gostavam de pintar paredes...”
“- ...e em Pompeia também descobriram qualquer coisa escrita numa parede.”
E lá continuamos avenida acima, divertidos em nossa divagação, mas eu sempre com um objectivo em mente: compreender a realidade social em que estava inserido, suas dificuldades e as soluções possiveis. Eu tinha que escrever sobre aquele tipo de coisas.
         Em Almada, as pessoas também gostavam de escrever nas paredes e elas contavam histórias muito antigas, mas não tão antigas quanto as das grutas pré-históricas. Contavam, sim, histórias do pós-25-de-Abril de 1974... e contavam somente histórias do pós-25-de-Abril de 1974 porque encontrar coisas escritas nas paredes anteriores áquela data era difícil, ou praticamente impossível. Não porque as pessoas tivessem sido mais asseadas antes da pacífica revolução que acabara(?) com a ditadura declarada, assumida... mas, sim, porque, naquele tempo de ditadura salazarista, quando aparecia alguma coisa escrita numa parede por alguém mais corajoso que durante a madrugada se atrevia a desafiar o controle do sistema fascista, aquela ousadia era, o mais rapidamente possivel, apagada, para que as mensagens não chegassem de manhã, aos olhos daqueles que, cedo, desanimados, controlados, subjugados, iam trabalhar.
As frases eram normalmente “Morte ao Fascismo” e “Abaixo a Salazar”, ou “Morte a Salazar” e “Abaixo o Fascismo” e não duravam muito tempo em exposição. Naquele tempo também não se chamavam graffitis.
         Chamavam-se, talvez, esperança.
         Aquela era a imagem que me fora transmitida: quando o povo saía de manhã, de cabeça baixa, para se dirigir ao trabalho, era com alegria que por vezes ainda conseguia lêr algumas daquelas mensagens que o sistema não conseguira ter tempo para lavar durante a noite. Era sinal de que ainda havia alguém a fazer alguma coisa. Ainda havia alguém a resistir ao tirano. Ainda havia esperança!...
Mas, enquanto a parede era limpa, ninguém a podia ler, a não ser disfarçadamente, pelo canto do olho. Baixavam a cabeça ao passar, pois lá estavam os cães do estado, os agentes da P.I.D.E./G.D.S, a controlarem: “- Circular! Circular! Não há nada para ver! Circular! Circular!”. Mas, maior parte das vezes,  nem precisavam de dizer nada: bastava um simples olhar, a simples presença daqueles indivíduos e era o quanto bastava para intimidar o povo a deixar cair os olhos no chão.
Só que havia sempre alguém que conseguia lêr e assim a mensagem de esperança, de prece, de profecia, depressa se espalhava pela cidade, nos cafés, nas barbieirias, nas colectividades, associações, etc... mas sempre com o cuidado de verificar com cuidado quem é que estava presente quando essas coisas eram faladas, contadas com um riso na face, ou com lágrimas nos olhos, não fosse estar presente algum bufo, algum chibo, olho-vivo do Estado.
         Quem arriscava a sua liberdade, integridade física e até mesmo a sua própria vida, só para rabiscar umas coisas na parede, era porque pertencia a algum grupo de resistência organizada. Não se fazia uma coisa daquelas de ânimo leve. O medo era muito! Mas era preciso manter a moral do povo em cima, o mais que se conseguisse. Era preciso manter a esperança! Peritos naquilo tinham sido sempre os comunistas: em qualquer parte do mundo onde houvesse a opressão ditactorial, lá estavam eles a formarem grupos organizados de resistência, sindicatos, associações e qualquer movimento que podesse despoletar em qualquer coisa omissa e que desse oportunidade a conquistar alguns direitos.
 Mas se olhássemos para a história dos países onde o comunismo fora chefe de estado e onde o fracasso governativo fora flagrante e terrível por parte daqueles que representaram tal ideal, facilmente deduzíamos que, provavelmente, o comunismo só servia para aquilo mesmo: força de resistência a poderes imperialistas e totalitários.
Não porque o comunismo em si, como ideal, fosse imperfeito (pelo contrário: o comunismo era um ideal perfeito de igualdade entre todos os indivíduos de uma sociedade) mas como “ismo” tinha sido sempre expresso através do totalitarismo de homens gananciosos, em regime de opressão, de intimidação, de controle e de terror.
Pessoalmente, acredito que o comunismo nunca resultaria na humanidade. Não dentro do contexto histórico em que estávamos inseridos.
O ciclo, politicamente, era vicioso e friamente, engraçado: se a direita subisse ao poder e assumisse uma atitude totalitária, a esquerda, enfraquecida, juntava-se aos fracos e oprimidos e oferecia-lhe organizada resistência, até que a coisa, mais cedo, ou mais tarde, dava a volta e o outro lado caía...
...mas se a esquerda, por sua vez, subisse ao poder e assumisse uma atitude totalitária, a direita, por sua vez, enfraquecida, evidentemente, juntava-se aos fracos e oprimidos e oferecia-lhe organizada resistência, até que a coisa, mais cedo, ou mais terde, dava a volta e o outro lado caía...
Se algum tirano maluco subisse ao poder, com ideais mais malucos ainda e que nada tivessem a haver com a direita, ou com a esquerda, mas somente com a simples ganâcia de um louco, então, a esquerda unia-se à direita e juntando-se as duas aos fracos e oprimidos, ofereciam organizada resistência ao tirano, o qual, mais cedo, ou mais tarde, caíria também...
Coisa de doidos!
Por estas e por outras é que era muito difícil encontrar pinturas anteriores ao 25 de Abril de 1974.
Cerca de trinta anos após a revolução dos cravos viam-se ainda espalhados nas paredes da cidade, vestígios de expressões das várias vertentes ideológicas que, durante aquelas cerca de duas dezenas e meia de anos de liberdade aparente, tinham tido a oportunidade para contar, cantar e escrever aos outros o que pensavam. As paredes tinham sido utilizadas para anunciar manifestações, divulgar ideias, pensamentos e muitos tipos de informação e desabafos.
Enquanto eu o Miguel subíamos pela avenida 25 de Abril acima, íamos lendo nas paredes à nossa direita, frases vindas dos anos setenta, tais como: “Viva a ditadura do proletariado!”... “Poder Popular”... “Viva o 1º Congresso da U.J.C." (União da Juventude Comunista), assinados com foice e martelo... ou então: “Operários camponeses soldados e marinheiros unidos vencerão” sem identificação (note-se que transcrevo, com pontos e virgulas – ou sem eles - tal e qual como elas estavam escritas nas paredes).
Viam-se em muitos lugares uma esfera vermelha, completamente vermelha, tendo no interior uma estrela amarela no ‘canto’ superior esquerdo e M.E.S. escrito na parte inferior. Quando andei a investigar aquele tipo de coisas e me deparei com aquele símbolo, não soube o que era, pois, quando o 25 de Abril se deu em 1974 eu tinha somente um ano de idade. Por isso, um dia, resolvi questionar as pessoas que por ali passavam perto daqueles símbolos, sobre o assunto, ali mesmo, na rua... e deduzi que seriam as pessoas mais velhas que melhor me informariam. Porém, para surpresa minha, nenhuma delas me respondeu e até levaram a mal eu fazer-lhes aquele tipo de perguntas, ali, no meio da rua. Senti o medo delas, como se temessem estar a ser observadas por forças ocultas, tenebrosas, em complot. Era incrível: seria possível que as pessoas ainda tivessem medo de um regime fascista que caíra havia mais de um quarto de século?! Sim. Era isso mesmo. Ainda tinham medo do fantasma do ditador, mesmo depois daquele ter morrido e da ditadura assumida ter desaparecido. Mais uma vez fora-me dado a entender o quanto aquelas pessoas tinham sofrido com tal regime. Enfim... mais tarde vim a descobrir que M.E.S. queria dizer “Movimento da Esquerda Socialista”.
Eram aquelas as mensagens que os anos setenta tinham escrito nas paredes, quando a instabilidade política e a liberdade de expressão dava a qualquer um a ilusória oportunidade para tentar a sua vez de subir ao poder.
“- Realmente, este país já teve que passar por muita coisa para chegar ao ponto em que agora estamos!” - emocionou-se o Miguel... e lá vibrou o clarim: “- Tivemos que andar à chapada com mouros, espanhóis, franceses, holandeses e sei lá mais quantos daqueles que quiseram ficar com este precioso braço de terra e mesmo com estas coisas todas ainda escritas nas paredes de todo o país, ainda existe tanta gente que não dá o devido valor à liberdade que temos!”
“- É verdade!... mas ainda temos que precorrer um longo caminho até serem colocadas em vigor certos direitos e determinadas leis que, se o fossem, proporcionariam ao povo uma melhor qualidade de vida. O povo ainda está muito agarrado ao preconceito de gerações de tradições judaico-cristãs e pagãs, as quais fazem deste povo, nesta altura da história, um povo tão retrogado, tão inerte e por vezes tão mesquinho. O povo português precisa de encontrar um motivo para viver como nação: sem um motivo, só resta subjugármo-nos aos sonhos de outros... mais precisamente, ao sonho americano de uma Nova Ordem Mundial. Precisamos de um sonho, senão, seremos facilmente conquistados pelo sonho de um novo governo mundial que se espalha por todo o planeta, capitalista, materialista, ditatorial, totalitário, imperialista, de controle tecnológico absoluto, que os Estados Unidos da América e a Europa estão a espalhar através da Organização das Nações Unidas.
Nos governantes não podemos confiar: “eles” estão do lado dos “outros”. Os governantes portugueses do P.S. (Partido Socialista) e do P.S.D. (Partido Socialista Democrático) estão todos ligados á maçonaria. Na verdade, o povo português não elege ninguém quando vai ás urnas em tempo de voto: os governantes de Portugal (assim como de outros países) são previamente escolhidos nas reuniões secretas do semi-secreto e para-político Grupo Bilderberg. Os governantes portugueses têm interesses pessoais quando se subjugam mansamente às directrizes alheias aos interesses nacionais: eles sabem o que se está a desenrolar no mundo e não querem fazer parte dos excluídos. Possivelmente, muitos deles até já estão implantados com o VERICHIP, o microchip distribuido pela Digital Angel Corporation em todo o mundo, desenvolvendo, pouco a pouco, com o consentimento da população, o controle absoluto sobre cada ser humano, cada animal e cada mercadoria.” - refleti, seriamente, com ele.
Como as paredes de Almada nos mostravam, nos anos oitenta as preocupações haviam mudado e podiam-se ler frases daqueles anos, tais como: “Portugal fora da N.A.T.O.”... "Somos todos habitantes da Terra. Não à energia atómica”... “Antes activo hoje que radioactivo amanhã.”... as quais reflectiam já um Portugal integralista para com a política e economia europeia, mundial, mas, essencialmente, norte-americana.
“- Olha, lá...” - divergiu, em convite, Miguel – “... o que é que achas de irmos até lá acima a Almada Velha?”
“Sim... acho que é uma boa ideia. Mas ainda é cedo: podíamos passar pela relva e ficar um bocado por lá.” - sugeri.
“- O.k. Vamos nessa, ó Vanessa!” - entuou ele a voz como uma corneta.
“- Mas mais tarde podíamos era petiscar qualquer coisa em Almada Velha... o que é que achas?” - revelei-lhe eu a conforto monetário que tinha nos bolsos.
Ele olhou para mim, levantou as sobrancelhas e respondeu:
“- Sim... é uma boa ideia!”
Entretanto continuamos por ali acima, subindo as avenidas, desbravando aquela vaga de calor forte como há muito tempo não se sentia. Dizia-se que era devido às alterações climatéricas que se vinham a fazer sentir sobre todo o planeta sob a forma de destruidores ciclones, inundações, incêndios e vagas de calor e seca. Certezas o povo não tinha nenhuma, mas o que é certo é que havia anos em que as andorinhas chegavam em Janeiro, quando o costume era elas começarem a chegar só em Março. Estava extremamente difícil caminhar naquele dia: o ar estava quente demais e até custava a respirar. Era como se inalássemos fogo.
Nos anos noventa, com a invasão das modas, tendências e ideais estrangeiros, a coisa complicou-se a nivel da poluição visual e Almada tinha, literalmente, todas as paredes escritas, rabiscadas, autografadas por tags escritos com marcadores de tinta potente que custava a ser retirada. Algumas das coisas escritas tinham sentido, mas maior parte eram ruído comunicativo, coisas sem nexo. Eram lixo artístico, reflexo das jovens mentes vazias e confusas que os novos tempos estavam a criar. Se a humanidade já estava dividida em diversos ideais, nos anos noventa ela estilhaçou-se em dezenas, centenas, senão milhares de pedaços e como não podia deixar de ser, aquilo também chegou a Almada.
Por exemplo: o movimento nazi chegara a Almada de um modo que, sem eu saber como, fora tocar em jovens da minha geração e que tinham andado nas mesmas escolas do que eu. Perguntava-me: de onde viria essa propaganda? Quem a divulgaria? Quem a financiaria? O que ofereceria essa propaganda de tão bom que fazia um jovem que crescera ao meu lado tornar-se um neonazi? Uma coisa era  certa: ela chagara a Almada e nas paredes reflectira-se pelas mãos do M.A.N. (Movimento de Acção Nacional), o movimento nazi português: “ Poder Branco”... “Salvem a raça Branca”, assinado com enormes suásticas e enormes cruzes celtas. Mas este tipo de  mensagens reflectiam também uma luta que se processava não se sabia bem onde. Por exemplo: por cima de uma inscrição nacionalista do M.A.N. (“Por Portugal - Movimento de Acção Nacional”), havia uma cruz (X) verde feita a spray e por baixo lia-se, também a verde: “contra o fAscismo” (o A circundado por um círculo) feito, evidentemente, por um grupo anarquista. Depois ouvia-se dizer que tinha havido conflitos com os skinhead’s no Bairro Alto, em Lisboa, contra não se sabe bem quem.
Os anarquistas também tiveram o seu lugar nas paredes almadenses, quando, a uma dada altura, perto de umas eleições que não me lembro quais, se viu aparecer escrito: “Atenção! Aviso à população: poder é corrupção!”... e “Votem carneiros!”... ou “Polícia não é solução”... “Haverá vida depois do trabalho?”... “Ganhe quem ganhar tu perdes. Não votes”.
E foi, então, que  Almada, perto do ano 2000, atingiu o seu auge e ficou afogada em pinturas e rabiscos. Mas que não se confundissem as coisas: o pessoal que fazia graffitis (belos desenhos com mensagens escritas, ou não) eram artistas que expressavam nas paredes, belas e até belíssimas obras de arte, as quais representavam o que o ambiente urbano lhes transmitia. Faziam-no às escondidas porque a sociedade em geral ainda não compreendera legalmente que, em certos locais estratégicos, o graffiti embelezava a cidade, dava-lhe ritmo, cor e alegria... principalmente em bairros-sociais, onde a bruta arquitectura idealizada e ali construida descorara o ponto de vista de que o ser-humano necessitava de ver coisas belas para se sentir bem e saber o que é bom. Ora, a existência da violência em maior parte daqueles bairros era também um reflexo da própria paisagem urbanística que convidava a atitudes de desinteresse e despeito para com os edifícios, para com as outras pessoas, para com a sociedade. Mas o embelezamento da cidade, quando executado por artistas - como eram os verdadeiros graffiteiros - tinha um impacto belo, moderno, audaz e positivo sobre a população em geral. E estes artistas tinham de, para além de pagar o seu próprio trabalho, ainda fazer os graffitis às escondidas da policia, senão, iam presos, acusados de vandalismo. Depois haviam os graffiteiros frustrados que, por não saberem fazer coisas belas com o spray, nem tão pouco possuírem conceitos de beleza e estética que fosse de acordo com o conceito de beleza e estética da maioria das pessoas, limitavam-se a pintar truwap’s (que eram somente letras grandes e gordas e maior parte das vezes mal desenhadas e mal pintadas que só tornavam mais feio aquilo que, por vezes, já era feio) e tag’s (que eram, simplesmente, assinaturas desenhadas, copiando as assinaturas dos verdadeiros artistas do graffiti que, maior parte das vezes não assinavam com o próprio nome, mas com pseudónimos). Devido aqueles truwap’s e aqueles tag’s feitos por putos traquinas que vandalizavam daquele modo tudo o que encontravam pela frente, é que o graffiti ganhou tão má fama em Almada. Por toda a cidade viam-se os tag’s : page, rocket, krime, vogh, tms, still e sei lá mais  o quê, em paredes, caixas de electricidade, transportes públicos, carrinhas do pão, do peixe, da fruta, nos estores das janelas, nas portas das casas e nas paredes dos prédios, feitos por putos com latas de spray e marcadores escondidos por debaixo dos blusões.
Putos, agora falo para vocês: se vocês queriam chamar a atenção e serem reconhecidos, nem que fosse à custa da difamação do graffiti, conseguiram: eu incluívos em “Almada dos Meus Olhos”.
Fora isto, também se liam algumas mensagens bonitas, tais como, simplesmente: “Amo-te. Ou “Amo-te, Sofia”.